quarta-feira, 6 de junho de 2012

A Igreja dos Mortos-Vivos

"Pai nosso que estais nos céus
A primeira frase sussurrada ao ajoelhar-se no genuflexório não poderia ser outra, não poderia ser murmurada sem ser ajoelhado, não poderia ser feita com paz no coração. Não naquele momento.
"Santificado seja o vosso nome"
Ao fundo, passos. Lentos passos rumo ao altar, em direção daquele que perturbava o martírio de Nosso Senhor.
"Venha a nós o vosso reino"
A quem pertence aquele caminhar? Seria a um deles? Não! Apesar de lentos, são passos firmes, de quem realmente sabe para onde vai! Talvez seja mais um fiel.
"Seja feita a vossa vontade"
As mãos estão agora mais unidas do que nunca. O suor escorre por entre os dedos trêmulos de quem não tem certeza se, dali para frente, tudo estará bem.
"Assim na terra como no céu"
Os atitos dos gaviões que voam nas alturas se fazem ecoar pela cúpula quase como se eles estivessem dentro daquele templo.
"O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas"
Esses malditos passos estão cada vez mais próximos e mesmo assim demoram a chegar!
"Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido"
Talvez seja aquele vizinho chato vindo pedir perdão pelo palavreado abusivo de quando tudo isso começou.
"E não nos deixeis cair em tentação"
E quase no final da mais sagrada das orações, a mente se desvia para as lembranças da noite em que a mulher do vizinho serviu de consolo para a perda da própria esposa.
"Mas livrai-nos do mal"
Os passos pararam. O som da inspiração indicava uma proximidade assustadora.
"Amém!"

O estampido do revólver ecoou por toda a igreja. O sangue projetou-se de uma perfuração no centro da testa direto para o branco que envolve o altar. O corpo largou-se sobre o apoio do genuflexório, como um anjo se debruça sobre o túmulo.
O último pedido de um desesperado foi realizado. Estava livre daquele mundo na qual a força não designa aquele que sobrevive. O mundo se tornou um lugar cujos mortos erguem-se para saciar o desejo infinito de ingerir partes daqueles que foram de alguma importância em suas vidas.
Mais uma vez o estampido afugentou os pássaros que descansavam no coro. A arma estava no chão. Ao seu lado, um corpo de meia idade a reforçar ainda mais o vermelho do tapete. Ao fundo, dezenas correm em direção ao tão esperado banquete.

P.S.: E nesse dia, a excruciante dor de ter generosos pedaços da carne mastigados foi evitada graças a alguém que atendeu aos pedidos contidos na prece. Pode-se dizer que foi obra de um controverso anjo.
P.S.²: O sacrifício realizado nunca será em vão.
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