sábado, 22 de agosto de 2020

Guardião

 Muito antes de qualquer explorador desembarcar naquelas terras verdes e ricas, uma pequena tribo usufruía de sua diversidade. Viviam em relativa paz e abundância, uma vez que a corrupção ainda não havia chegado de longínquas culturas desgastadas pela ganância e o poder.

A tribo, localizada em meio à floresta densa, era composta por um grande ancião como conselheiro, o homem mais forte como líder e algumas famílias que eram responsáveis pela manutenção de toda a tribo, fazendo serviços de plantio, caça, pequenos consertos em suas moradias e o que mais fosse preciso. O ancião possuía uma idade avançada em suas costas, mas a jovialidade em seu espírito: Era brincalhão com as crianças, cordial com as mulheres e não perdia a chance de pregar uma peça nos homens carrancudos da tribo, mas sempre estava ciente de sua responsabilidade como conselheiro e colocava o bem estar de todos acima de qualquer ação a ser tomada. Gostava, também, de se embrenhar na mata para conhecer melhor as plantas e os animais que por ali encontrava. Possuía um grande acervo de plantas em sua moradia, da qual havia testado para diversas finalidades, descobrindo suas propriedades alimentícias, medicamentosas ou até mesmo as tóxicas, que eram usadas na caça.

Em uma manhã ensolarada, o ancião se embrenhou na mata mais uma vez para procurar algumas plantas e foi até o ponto mais distante da tribo, no local que sempre as encontrava. Caminhou por alguns minutos e ficou surpreso ao ver uma nova tribo se estabelecendo. Escondeu-se e observou atentamente àquelas pessoas. Percebeu uma certa truculência no modo como se tratavam e no modo como se estabeleciam, pois abriram um espaço muito grande para o tamanho da tribo que estava ali e, aparentemente, continuariam a abrir espaço mata a dentro, inclusive abatendo alguns animais que não eram comuns para alimentação.
Observou por algumas horas e resolveu voltar. Pensou em como faria para não deixar marcas que levariam aquela tribo agressiva de encontro a sua e lembrou-se de uma brincadeira que fazia com seus irmãos mais novos para que não o seguissem em suas explorações: andava de costas e deixava pegadas que não levavam a lugar algum. E assim o fez, deixando rastros que levavam de um ponto aleatório a outro, o que confundiria quem os percebessem. Como era um grande pregador de peças, deixou algumas pequenas armadilhas no caminho para garantir um pouco mais de confusão e se divertir imaginando como aqueles grosseirões sairiam delas.

O ancião repetiu suas observações por mais alguns dias, sempre deixando suas confusas trilhas e armadilhas engraçadinhas para trás. Enquanto caminhava, de costas, de volta para sua tribo, esbarrou em algo que não era duro e nem alto o suficiente para ser uma árvore. Havia esbarrado em um dos guerreiros da nova tribo. Não conseguiu juntar forças para correr e foi capturado e levado e colocado de joelhos diante do líder daqueles homens: um homem robusto, de grande estatura e face assustadora. Ouviu a comunicação entre soldado e líder, mas não conseguia compreender aquela linguagem, só que, provavelmente, não o libertariam tão facilmente.

O líder se calou e o soldado levantou o ancião e o levou até outra moradia, colocando-o deitado em uma grande pedra e chamando outros soldados para que segurassem os braços e pernas do ancião. O soldado então pegou com as duas mãos uma pedra com formato quase esférico e caminhou em direção às pernas do idoso, que fechou os olhos, já imaginando a grande dor que o afligiria a seguir. O soldado ergueu a pedra acima da própria cabeça e a desceu com toda sua força na canela esquerda do ancião, que gritou em agonia e desespero, tentando se desvencilhar dos outros soldados, mas em vão. Antes mesmo de se recuperar do primeiro golpe, recebeu outro  na mesma canela, a qual não mais sentiu o próprio pé. O próximo golpe, na canela direita, o fez perder os sentidos com excruciante dor. Conseguiu abrir os olhos por alguns instantes, mas os lampejos de dor o impediam de recobrar a consciência por completo. Apenas reparou que estava sozinho na habitação.

Abriu os olhos novamente por alguns segundos e teve a impressão de ver uma jovem mulher flutuar acima de si. Não conseguiu focar a visão por estar exausto de tanto sofrimento e perdeu os sentidos novamente. Conseguiu uma última vez abrir os olhos e, mesmo exausto, levantou seu tronco e olhou em direção a seus pés e os viu encaixados em suas canelas, mas virados para trás, como uma vingança por suas brincadeiras. Quase perdendo os sentidos novamente, ouviu uma doce voz feminina que dizia “me proteja” e desmaiou uma última vez mas, agora, não perdeu totalmente os sentidos e foi se sentindo revigorado, como se rejuvenescesse a cada segundo! Seu corpo se fortalecia como nos tempos da juventude, sentia seu cabelo crescer, sua pele esticar e seus pés se grudarem novamente às pernas. Logo abriu os olhos e se levantou rapidamente, sem esforço algum. Olhou para baixo e percebeu que seu corpo estava menor, mas forte, sem sinal da passagem do tempo e seus pés estavam novamente em suas pernas, mas apontados para trás! Estava confuso, mas não pensou muito e correu floresta a dentro, em direção a sua tribo.

Estava tudo destruído. Seus companheiros estavam todos mortos. A floresta estava maltratada e os animais mortos. O ódio dominava seus pensamentos. Uma voz se fez ouvir novamente “me proteja! Não deixe que isso se repita” e o deu a certeza de que era um apelo da própria floresta. Ele jamais deixou o ódio de lado, mas jurou proteger a mata para que nada daquilo se repetisse. Começou a cumprir sua promessa exterminando a tribo que o causou tanto sofrimento e, desde então nunca mais parou. A floresta ganhou um protetor cuja história se faz presente até a atualidade.

P.S.:  Mais uma origem recontada.
P.S.²: Em um momento na qual a floresta arde em chamas, tal guardião seria espetacular!