quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O PUB

Crianças fantasiadas de toda a sorte de monstros andam pelas ruas decoradas com as mais variadas monstruosidades concebidas em plástico, isopor e papel higiênico. Era a noite mais aguardada do ano para Caio e Marcelo. Finalmente estavam nos EUA e conheceriam a mais famosa festividade de lá: o halloween. Mas eles não eram duas crianças deslumbradas, eram dois marmanjos de 30 anos em férias da empresa que resolveram viajar juntos. Planejaram todos os detalhes durante o ano anterior, deixaram de beber durante longos seis meses para poderem tomar um porre assustador em terras estrangeiras.

Os amigos haviam chegado a uns dois dias e já foram fazer um reconhecimento da pequena cidade toda decorada. Ficaram um tanto quanto desapontados ao perceber que tudo era muito simples, que o ar de mistério e incrível decoração dependia mais do ângulo escolhido pelo fotógrafo do que pela criatividade dos moradores. Mas isso não os desanimou. Foram procurar um dos famosos pubs para passar o dia 31 de Outubro bebendo em meio a outros tantos marmanjos que, provavelmente, estariam fantasiados e levariam algumas garotas. Trinta anos nas costas e com a ideia de que tudo seria como nos seriados e filmes que assistiam na adolescência.

O pub mais famoso da cidade, localizado em uma esquina em frente a uma pequena praça, estava fechado naquele dia, mas havia um grande cartaz colado na porta que convocava todos para os festejos de halloween, a fantasia, que começariam à meia-noite e terminaria às onze e cinquenta e nove do dia 31. Os amigos ficaram mais animados ainda ao lerem que haveria uma rodada grátis de chope para todos logo nos primeiros momentos.

Finalmente o dia chegou! Ainda nem eram dez horas da noite e ambos já estavam com suas fantasias postas: Caio era uma múmia de papel higiênico e Marcelo um fantasma de lençol. Nada criativos e ainda bem que não era uma competição! Saíram do hotel e foram dar uma volta pela cidadezinha e observar as decorações novamente, já que agora as veriam todas iluminadas. Se sentiram um pouco menos desapontados ao perceberem que as luzes ajudavam a criar um clima mais glorioso aos fantasmas de papel e às abóboras de plástico vagabundo. Enquanto andavam, perceberam um ou outro vulto passeando entre as decorações. Imaginaram ser algumas crianças que não aguentariam esperar até a noite seguinte para assustar dois turistas desavisados, ou estariam os bobalhões realmente com medo? Resolveram deixar aquela rua deserta para lá e irem logo aguardar o pub abrir.

Ao chegarem ao pub, perceberam que já havia uma longa fila de espera. Uma fila formada por múmias envoltas em tiras de papel higiênico, demônios vermelhos de tinta guache, lobisomens que não precisavam colar pelos em seus próprios corpos por já os possuírem em demasia, vampiros saídos de um sex shop e até mesmo por um Thanos magricela e um Coringa muito acima do peso. Apesar do desleixo, as fantasias de Caio e Marcelo ainda eram melhores que muitas dali. O que desanimou os amigos foi a falta de mulheres. Será que nenhuma viria? Ou será que as garotas só aparecem mais tarde para evitar assédio na fila? Não importava! Desde que viessem! Enquanto a dúvida permeava as mentes pervertidas, os dois maltrapilhos se posicionaram atrás de um projeto de Crocodilo Dundee.

As portas finalmente se abriram e a fila andou. O pub era apertado e estava lotado de homens mal fantasiados. Ainda bem que não era no Brasil, senão o calor faria daquele o lugar mais insuportável para se estar. Conseguiram arrumar lugar para se sentarem em frente ao balcão e logo um bartender fantasiado como o Senhor das Trevas do filme A Lenda, de 1985, depositou uma enorme caneca em forma de crânio repleta de chope avermelhado para eles. A fantasia era incrivelmente realista! Ficaram imaginando o pobre bartender sendo maquiado por horas para obter aquele resultado fantástico. Beberam o primeiro gole de chope e ficaram espantados em como era saboroso e refrescante! Não tinha gosto de corante ou de groselha como nos barzinhos metidos a chique do Brasil, mas sim um sabor leve e completamente diferente dos chopes brasileiros. Beberam com afã aquela maravilha e logo esvaziaram a “crâneca” (a criatividade deles estava a mil de tão empolgados que estavam). Queriam mais, mas por incrível que pareça, não conseguiam localizar o “capirotão”. Cada um olhou para um lado e, ao voltarem a cabeça para frente novamente, encontram suas crânecas cheíssimas novamente. E nada do capirotão. Resolveram não pensar na esquisitice da situação e resolveram beber com um pouco mais de calma, afinal, ainda havia mais um dia inteiro de festa pela frente.

Já eram mais de duas da madrugada e nenhuma mulher havia chegado ao pub. Ficaram encanados de ser um pub voltado ao público gay, mas ninguém estava se pegando, não tocava nenhuma música mais sugestiva e o pessoal estava até controlado demais para duas horas de bebedeira. Tudo estava normal demais, exceto pela ausência de mulheres. Não havia nenhum anúncio de que aquele era um pub na qual só poderiam entrar homens. Onde estariam todas as garotas? Logo a dúvida foi deixada de lado, pois uma finalmente se sentou ao lado de Marcelo! Estava fantasiada como Diabolin, do desenho Cavalo de Fogo. A fantasia era incrível por duas questões: era muito bem feita e quem diabos se lembrava desse desenho fracassado?!

A Diabolin em questão era uma mulher que aparentava ter uns 40 anos e uma aparência realmente similar à do desenho de 1986. Marcelo imaginou que, por ela conhecer esse desenho, talvez reconheceria o bordão que utilizaria para abordá-la e mandou um “How you doing?” com sua expressão sedutora mais canastrona possível. Sem resposta. Ela sequer olhou. Imaginou que não fosse americana e tentou cumprimenta-la em português. Nada. Francês? Tão pouco. Procurou no celular como cumprimentar uma mulher em Alemão. Falhou. Apesar dela não ter nenhum traço asiático, tentou japonês, chinês, indiano. Desistiu. Achou que já estava sendo inconveniente demais àquela altura do campeonato. Resolveu sentar virado para a área na qual as pessoas estavam em pé no pub e ficar comentando com o Caio sobre os figurões que lá estavam. Deu uma última olhada e a mulher misteriosa já não estava mais lá. Já não estava mais em lugar algum.

Depois de três crânecas de chope vermelho, Caio foi ao banheiro pela primeira vez. Estava muito apertado. Havia apenas um mictório e uma cabine no banheiro. O mictório estava quebrado e a cabine ocupada, com o Crocodilo Dundee e um lobisomem aguardando a sua frente. O peludão aparentava estar sem paciência e resmungou algo sobre estarem demorando muito lá dentro e bateu com força na porta, avisando que havia mais gente querendo usar o banheiro. Silêncio. Ele e Dundee trocaram olhares e o lobisomem sentou o pé na porta da cabina, derrubando-a e logo saltando para trás assustado. Do assento do vaso sanitário até próximo aos limites das paredes de madeira da cabine havia sangue e pequenos pedaços de carne grudados. O susto foi tanto que o exageradamente provido de pelos esqueceu de continuar contendo sua urina e a despejou em sua calça branca, deixando-a rubra. Caio recuou ao ver o líquido vermelho escorrer pelas canelas do homem, pois não tinha como a bebida deixar a urina daquela cor, tampouco com aquela espessura. O homem estava urinando sangue sem parar e estava em desespero por isso! Apoiou o braço esquerdo esticado na parede e olhou para baixo arfando enquanto via a poça crescer cada vez mais ao redor de seus pés. O outro homem urinou normalmente no vaso ensanguentado, lavou as mãos e saiu como se nada estivesse acontecendo. Caio estava acuado na parede ao lado da porta do banheiro, urinado, tremendo e paralisado com aquela cena toda. Após alguns instantes, o lobisomem esbaforiu mais alguns momentos e desmaiou, batendo a cabeça na parede e logo em seguida caindo na própria poça de sangue.

Caio saiu do banheiro alarmado, molhado e tremendo, querendo sair dali o mais rápido possível. Mas logo viu que seria impossível. Não havia mais ninguém no salão a não ser uma pilha disforme composta de pedaços humanos coloridos ou enrolados em papel higiênico manchado de vermelho. Ao lado, o senhor das trevas segurava um inquieto e desesperado Marcelo pelo pescoço e o erguia até acima de sua cabeça, quase mais alto até que seus chifres. Riu de satisfação e apertou sua poderosa mão até despedaçar o pescoço de Marcelo. Jogou o corpo um pouco para cima e o atravessou com seu braço. Aquela criatura era tão poderosa que Caio apenas ficou parado; sabia que não teria nenhuma chance.

O monstro jogou o corpo de Marcelo junto ao monte de tantos outros e saiu. Em seguida, pequenos vultos correram do banheiro em direção a pilha sangrenta e se revelaram pequenos seres semelhantes a bebês humanos. Havia meia dúzia deles. Um pegou um braço decepado, abriu uma enorme bocarra com dentes serrilhados e o devorou com duas mordidas rápidas. Logo todos fizeram o mesmo. A pilha acabou em menos de cinco minutos e lamberam o que sobrou com suas enormes línguas.

Caio não sabia a razão de ter sido poupado. Será que não o viram? Talvez ele não fosse muito saboroso. Ou talvez a urina incomodasse. Ou talvez... bom, ele não precisava mais se preocupar. Em sua frente estava Diabolin, perfurando sua barriga com um punhal. O olhar fixo em seus olhos. As últimas imagens vislumbradas por Caio foram da enorme boca com dentes serrilhados se aproximando de seu rosto.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Pássaros e o Abismo

O profundo abismo finalmente se abriu aos pés do pequeno pardal. Como sabia que não deveria explorar por conta própria, sentou-se na beirada e observou a escuridão infinita que se aprofundava; pensava que seria impossível alguém olhar para aquilo e ainda assim resolver pular sem ao menos uma lanterna em direção ao desconhecido.

Pouco tempo se passou e algumas poucas e corajosas ararinhas mergulharam munidas de pequenas velas e iluminaram trechos do que se revelou um grande paredão sangrento e fétido. A luz é pouca, mas o suficiente para revelar que o salto para o abismo ali, naquele momento, ainda era arriscado demais. As poucas vozes, tão fracas quanto as anêmicas chamas das minúsculas velas, gritam desesperadas para que não saltem! O risco de passar pelo paredão coagulado e imergir no breu eterno ainda é desconhecido.

Momentos após os primeiros e parcos alarmes, saíram das profundezas alguns poucos corvos a crocitar que o caminho era seguro. Saiam se arrastando, limpando de suas joias e roupas as bolhas rubras encrostadas, mas minando uma nascente vermelha de suas penas melasmáticas. Os corvos crocitavam mais alto a medida que saiam do abismo, mas deixavam um rastro cada vez maior de pútridos nacos avermelhados e fortaleciam a correnteza escarlate, que arrastava alguns pequenos joões-de-barro que, ao contrário dos corvos, quase nunca retornavam.

Do abismo começaram a emanar gritos de desespero; as lamúrias das gaivotas responsáveis pelo resgate daqueles que se prenderam ao paredão, levados através da correnteza vermelha, em busca apenas de proteção para que suas penas também não grudem na pegajosa gosma pútrida que o reveste. Em vão. Uma a uma as gaivotas tiveram em suas penas revestidas, levando-as a tombar no breu eterno. Revoadas se fizeram em sua homenagem.

A beira do precipício, gaviões faziam barricadas, cada uma do seu próprio jeito. Uns usavam toras imensas para impedir que os demais fossem arrastados; outros apenas alguns galhos secos e frágeis, cobertos por uma grossa cortina escura. Com o tempo, as grandes toras foram bicadas por gordos abutres que não podiam mais continuar sem encher suas enormes panças com quantidades tão limitadas de pequenas almas. Grandes buracos foram abertos nas toras, reduzindo-as apenas a um enfeite macabro para ornamentar o salto na escuridão.

Enfim o grande urubu se fez ouvir novamente. Crocitava impropérios, induzindo dezenas de papagaios a repetirem suas ordens contra os gaviões aos demais, afim de que qualquer barreira ao abismo fosse retirada. Tinha o rosto pintado de branco, pois se achava uma imponente e astuta águia, apesar de se atrapalhar até mesmo para comer a carniça deixada pelas raposas. Ele próprio alimentava a correnteza, agora pútrida, que arrastava todos a seu destino. Mas a pintura impressionava aos ignorantes, principalmente aos que clamavam por uma águia imponente no comando de tudo. Pobres tolos. Todos estavam convencidos de que deveriam aceitar seu destino e às margens de um abismo fétido e obscuro. Apenas o pequeno pardal e algumas ararinhas munidas de pequenas velas ainda se preocupam. Lágrimas rolam por seus bicos. Suas vozes são encobertas pelo som da cachoeira bordô. O abismo agradece.


P.S.: Até quando urubus se fingindo de águias nos dirão o que fazer?

sábado, 22 de agosto de 2020

Guardião

 Muito antes de qualquer explorador desembarcar naquelas terras verdes e ricas, uma pequena tribo usufruía de sua diversidade. Viviam em relativa paz e abundância, uma vez que a corrupção ainda não havia chegado de longínquas culturas desgastadas pela ganância e o poder.

A tribo, localizada em meio à floresta densa, era composta por um grande ancião como conselheiro, o homem mais forte como líder e algumas famílias que eram responsáveis pela manutenção de toda a tribo, fazendo serviços de plantio, caça, pequenos consertos em suas moradias e o que mais fosse preciso. O ancião possuía uma idade avançada em suas costas, mas a jovialidade em seu espírito: Era brincalhão com as crianças, cordial com as mulheres e não perdia a chance de pregar uma peça nos homens carrancudos da tribo, mas sempre estava ciente de sua responsabilidade como conselheiro e colocava o bem estar de todos acima de qualquer ação a ser tomada. Gostava, também, de se embrenhar na mata para conhecer melhor as plantas e os animais que por ali encontrava. Possuía um grande acervo de plantas em sua moradia, da qual havia testado para diversas finalidades, descobrindo suas propriedades alimentícias, medicamentosas ou até mesmo as tóxicas, que eram usadas na caça.

Em uma manhã ensolarada, o ancião se embrenhou na mata mais uma vez para procurar algumas plantas e foi até o ponto mais distante da tribo, no local que sempre as encontrava. Caminhou por alguns minutos e ficou surpreso ao ver uma nova tribo se estabelecendo. Escondeu-se e observou atentamente àquelas pessoas. Percebeu uma certa truculência no modo como se tratavam e no modo como se estabeleciam, pois abriram um espaço muito grande para o tamanho da tribo que estava ali e, aparentemente, continuariam a abrir espaço mata a dentro, inclusive abatendo alguns animais que não eram comuns para alimentação.
Observou por algumas horas e resolveu voltar. Pensou em como faria para não deixar marcas que levariam aquela tribo agressiva de encontro a sua e lembrou-se de uma brincadeira que fazia com seus irmãos mais novos para que não o seguissem em suas explorações: andava de costas e deixava pegadas que não levavam a lugar algum. E assim o fez, deixando rastros que levavam de um ponto aleatório a outro, o que confundiria quem os percebessem. Como era um grande pregador de peças, deixou algumas pequenas armadilhas no caminho para garantir um pouco mais de confusão e se divertir imaginando como aqueles grosseirões sairiam delas.

O ancião repetiu suas observações por mais alguns dias, sempre deixando suas confusas trilhas e armadilhas engraçadinhas para trás. Enquanto caminhava, de costas, de volta para sua tribo, esbarrou em algo que não era duro e nem alto o suficiente para ser uma árvore. Havia esbarrado em um dos guerreiros da nova tribo. Não conseguiu juntar forças para correr e foi capturado e levado e colocado de joelhos diante do líder daqueles homens: um homem robusto, de grande estatura e face assustadora. Ouviu a comunicação entre soldado e líder, mas não conseguia compreender aquela linguagem, só que, provavelmente, não o libertariam tão facilmente.

O líder se calou e o soldado levantou o ancião e o levou até outra moradia, colocando-o deitado em uma grande pedra e chamando outros soldados para que segurassem os braços e pernas do ancião. O soldado então pegou com as duas mãos uma pedra com formato quase esférico e caminhou em direção às pernas do idoso, que fechou os olhos, já imaginando a grande dor que o afligiria a seguir. O soldado ergueu a pedra acima da própria cabeça e a desceu com toda sua força na canela esquerda do ancião, que gritou em agonia e desespero, tentando se desvencilhar dos outros soldados, mas em vão. Antes mesmo de se recuperar do primeiro golpe, recebeu outro  na mesma canela, a qual não mais sentiu o próprio pé. O próximo golpe, na canela direita, o fez perder os sentidos com excruciante dor. Conseguiu abrir os olhos por alguns instantes, mas os lampejos de dor o impediam de recobrar a consciência por completo. Apenas reparou que estava sozinho na habitação.

Abriu os olhos novamente por alguns segundos e teve a impressão de ver uma jovem mulher flutuar acima de si. Não conseguiu focar a visão por estar exausto de tanto sofrimento e perdeu os sentidos novamente. Conseguiu uma última vez abrir os olhos e, mesmo exausto, levantou seu tronco e olhou em direção a seus pés e os viu encaixados em suas canelas, mas virados para trás, como uma vingança por suas brincadeiras. Quase perdendo os sentidos novamente, ouviu uma doce voz feminina que dizia “me proteja” e desmaiou uma última vez mas, agora, não perdeu totalmente os sentidos e foi se sentindo revigorado, como se rejuvenescesse a cada segundo! Seu corpo se fortalecia como nos tempos da juventude, sentia seu cabelo crescer, sua pele esticar e seus pés se grudarem novamente às pernas. Logo abriu os olhos e se levantou rapidamente, sem esforço algum. Olhou para baixo e percebeu que seu corpo estava menor, mas forte, sem sinal da passagem do tempo e seus pés estavam novamente em suas pernas, mas apontados para trás! Estava confuso, mas não pensou muito e correu floresta a dentro, em direção a sua tribo.

Estava tudo destruído. Seus companheiros estavam todos mortos. A floresta estava maltratada e os animais mortos. O ódio dominava seus pensamentos. Uma voz se fez ouvir novamente “me proteja! Não deixe que isso se repita” e o deu a certeza de que era um apelo da própria floresta. Ele jamais deixou o ódio de lado, mas jurou proteger a mata para que nada daquilo se repetisse. Começou a cumprir sua promessa exterminando a tribo que o causou tanto sofrimento e, desde então nunca mais parou. A floresta ganhou um protetor cuja história se faz presente até a atualidade.

P.S.:  Mais uma origem recontada.
P.S.²: Em um momento na qual a floresta arde em chamas, tal guardião seria espetacular! 

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Silêncio

    A voz, outrora pomposa e rebuscada, foi tornando-se esculachada e grosseira. O corpo, antes esguio e preparado, tornou-se macilento e estático. Os cabelos, dourados e macios, estão se tornando escassos e duros. O sorriso, talvez não tão presente, se faz cada vez mais ausente.
   Os anos passaram, a dor continua, a esperança está lá cintilante como sempre, o arrebatador desespero cresce e se multiplica assustadoramente a cada segundo. Os sentimentos se misturam, criam compostos enegrecidos com suaves fios brilhantes. Tudo é uma enorme bagunça, tudo é crítico, tudo é apenas uma firme ilusão.
     Novas e incríveis gerações surgiram, cada vez mais espertas, cada vez mais interessantes e cada vez mais arrogantes e estúpidas. Os vislumbres do passado distante causam repulsa, fecham a cara, amargam a boca. Não sobrou nada daquele tempo. 
      Tantos devaneios, tantas histórias, tantas vontades guardadas eternamente dentro de uma carcaça que se deteriora com o caminhar dos ponteiros. Os gritos, os ecos, os destroços como estacas a destroçar a essência do que um dia foi um ser humano. Todas essas iguarias insossas armazenadas apenas no núcleo do ser, sem se revelaram ao mundo a não ser através de um olhar que grita por socorro, mas implora pra não ser ajudado. 


P.S.: (...)


sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Alma(s)

E o peregrino seguiu finalmente à grande metrópole para encontrar com seu destino ainda incerto. Caminhou por centenas de pessoas, passou batido por milhares de histórias de diversos tipos, mas nada o interessava, nada o tocava. Estava blindado em angústia e ansiedade. Seu corpo trêmulo não se acalmava, estava inquieto e despejava o suor frio da dúvida: será mesmo que todo o percurso e seus obstáculos foram dignos do que estava por vir? Ou tudo não passava apenas de uma grande ilusão? Só aquele momento poderia responder com toda certeza.
Após algumas horas, o corpo já trêmulo e molhado estava inundado e ressoava com os objetos ao redor. Não conseguia se conter perante o desespero e o medo; só queria que aquele momento acabasse logo, que tudo se revelasse e que as certezas se jogassem aos seus pés de uma vez. Em meio a espera, dois rostos conhecidos surgiram. Dois anjos da guarda se revelaram em meio à multidão. Dois anjos inebriados com a missão de acalmar um ser em polvorosa. E o fizeram bem. Conseguiram arrancar sorrisos inimagináveis àquela situação. Conseguiram, também, diminuir o desespero da espera. E resolveram caminhar um pouco em meio a multidão despreocupada e alvoroçada, parando próximos a vendedores ambulantes e suas quinquilharias diversas e bizarras, apenas para observar o caminhar das centenas de pequenas e brilhantes almas que ali passavam. E ali ficaram um tempo.
Eis que era chegada a hora de encarar a verdade há tanto esperada! Não dava mais para esperar: ou tudo se mostrava verdade, ou tudo desmoronaria definitivamente! E, após um pequeno aviso, eis que todo o cenário se desmonta. As pessoas e os anjos, agora, não passavam de pequenos borrões imperceptíveis, assim como os prédios e as tranqueiras dos ambulantes. Não haviam mais cheiros, gostos, pensamentos e nem dúvidas: o destino vinha direto em sua direção. O peregrino, que há pouco não conseguia se conter e precisava realizar gestos constantes para tentar, em vão, se acalmar, estava estático. A única coisa que conseguia fazer era fitar o par de olhos brilhantes que vinham em sua direção.
Um abraço. O mais caloroso e acolhedor abraço que alguém poderia receber foi entregue àquele que chegou a duvidar do destino inúmeras vezes. Um abraço que não era merecido após tantas falhas grotescas, após tantas desilusões e tanta dor causada. Um abraço que demonstrou que o destino não era implacável, apenas brincou com com a ambição e perseverança. Um abraço que serviu para dizer: você, após tantos anos, finalmente encontrou aquilo que procurava. Não precisa mais andar pelos vales sombrios ou caçar desesperos. Não precisa mais se sentir incompleto, pois a outra metade de sua alma está aqui finalmente, te abraçando como jamais fostes abraçado. Você, peregrino, está completo. Vá e seja feliz com um só, na companhia de seus inúmeros anjos da guarda espalhados por seu país. E não tema: tudo dará certo!
O encontro de duas almas que se completaram. O mundo fazia algum sentido ao peregrino finalmente. Mas tiveram que se separar mais um pouco dias após. Há muito o que se fazer antes que a união se faça de fato. Mas o peregrino está disposto a esperar o tempo que for, não importando se terá que esperar até uma próxima vida. E assim, duas almas se mostram apenas uma em um mundo de desesperança. E assim a jornada começa.

P.S.: E assim, na espera, tudo vira uma deliciosa bagunça.
P.S.²: Bom voltar depois de muito tempo parado.
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quarta-feira, 15 de maio de 2013

Álcool

Olhos fechados para visualizar melhor as lembranças de seu passado. Lágrimas que rolam pelo rosto agora enrugado e surrado. Um sorriso aqui, uma careta ali, tudo acontecendo novamente por debaixo das pálpebras de pele fina daquele solitário senhor, deitado em seu sofá de couro após uma tarde embebida em álcool. O resto de sol daquele dia entra pela janela e ilumina aquela pequena lágrima em seu caminho até o abismo entre a bochecha e o couro. A garrafa de uísque, agora vazia, está de pé próxima ao sofá, ao lado da mão de dedos grossos daquele homem.
Os olhos negros fitam os azuis daquele jovem rapaz. Risos ruborizados ecoam pela sala, seguidos do estalo de lábios insaciáveis um pelo outro. Roupas se vão, o pudor também e após várias horas de sussurros, gemidos e rangidos, ouve-se o debruçar de dois corpos ardentes em lençóis engruvinhados. Antes que qualquer coisa fosse dita, tudo se torna enevoado e os outrora apaixonados, se encontram discutindo, se agredindo e desiludindo: era o final de toda a esperança, o momento em que os olhos negros negaram o mergulho no azul profundo. O momento na qual o deus deu as costas a seu adorador. O instante em que o chão se abriu e o inferno se instalou na Terra. Em meio ao choro, os momentos de solidão passando como se estivessem em uma maratona, na qual o grande prêmio era segurar a mão fria e esquelética da ceifadora de almas. E ela esperava paciente, com um sorriso em seu pálido e magro rosto.
Olhos abertos. O senhor então senta-se e decide não mais lembrar do dia em que a escuridão que completava sua vida se foi. Tomou um banho, sentiu como se cada gotícula de água fosse uma agulha atravessando sua pele. As lembranças de como ele havia deixado aquilo acontecer o perseguem mesmo após tantos anos, e ainda doem como se tudo tivesse acontecido a poucos momentos. Agora ele passa os dias imaginando o que aconteceu e quem ilumina aqueles olhos escuros atualmente. Mais lágrimas, mais dor, mais vontade de apenas desaparecer. 
Ele está ajoelhado com suas mãos tapando o rosto enquanto as agulhas caem em suas costas. Uma brisa fria entra pela janela e uma presença é notada à sua frente: lá estava a guia para o outro mundo, com um sorriso aconchegante e a mão esperando para levantar aquele que já havia batalhado demais. Ele segurou sua mão, levantou e a seguiu para a luz mais reconfortante de todas. Ao fundo podia ver uma silhueta conhecida. Seu sorriso foi inevitável e, tomado pela sensação de ter seus vinte anos novamente, correu em direção a ela, a abraçou e nunca mais haveriam de se separar novamente, não importando de qual lado da vida fosse. E assim cumpriram o acordo por toda a existência.

P.S.: Promessas que deveriam ser cumpridas, mas sujeitas à aprovação de um superior. Talvez o ciclo envolva separações e dor, mas o amor prevalecerá.
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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Sonhos Intervalados

Observo-te ao longe sentado à mesa e rodeado de amigos e conhecidos nossos. Um olhar, todo entendimento. Um piscar, outro cenário. Burburinhos, silêncio. Pânico, apatia. Imprevisto. A noção de que algo está diferente. O perceber que não era para estar ali. A voz suprema, bem distante, questiona. Os coadjuvantes, antes principais, quebram o vínculo; apenas passeiam. Olhos estarrecidos encontram o profundo oceano negro. Paz. Por alguns segundos. Ironia. Sorriso sarcástico. Olhos que ameaçam afogar-me em uma mistura de conforto e deboche: talvez seja melhor assim. Um encontro silencioso de décadas em segundos. Dúvidas. Medo. Certeza.  O indestrutível resumido a escombros. Escuridão. O sol irrompendo da janela. Os olhos ardem. Uma lágrima. Uma revolta.  Apareça! Vamos! Não se esconda no meu refúgio! Saia daí! Nada. Apenas um quarto vazio. Somente dois corações despedaçados. Duas almas em busca uma da outra. Talvez à noite tenhamos um encontro melhor... Provavelmente não. Fecharei os olhos novamente. Nos encontramos lá, em nosso paraíso dos sonhos. 



P.S.: O mais confuso dos sentimentos se revela aos poucos, em intervalos de sonhos.
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