sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Pássaros e o Abismo

O profundo abismo finalmente se abriu aos pés do pequeno pardal. Como sabia que não deveria explorar por conta própria, sentou-se na beirada e observou a escuridão infinita que se aprofundava; pensava que seria impossível alguém olhar para aquilo e ainda assim resolver pular sem ao menos uma lanterna em direção ao desconhecido.

Pouco tempo se passou e algumas poucas e corajosas ararinhas mergulharam munidas de pequenas velas e iluminaram trechos do que se revelou um grande paredão sangrento e fétido. A luz é pouca, mas o suficiente para revelar que o salto para o abismo ali, naquele momento, ainda era arriscado demais. As poucas vozes, tão fracas quanto as anêmicas chamas das minúsculas velas, gritam desesperadas para que não saltem! O risco de passar pelo paredão coagulado e imergir no breu eterno ainda é desconhecido.

Momentos após os primeiros e parcos alarmes, saíram das profundezas alguns poucos corvos a crocitar que o caminho era seguro. Saiam se arrastando, limpando de suas joias e roupas as bolhas rubras encrostadas, mas minando uma nascente vermelha de suas penas melasmáticas. Os corvos crocitavam mais alto a medida que saiam do abismo, mas deixavam um rastro cada vez maior de pútridos nacos avermelhados e fortaleciam a correnteza escarlate, que arrastava alguns pequenos joões-de-barro que, ao contrário dos corvos, quase nunca retornavam.

Do abismo começaram a emanar gritos de desespero; as lamúrias das gaivotas responsáveis pelo resgate daqueles que se prenderam ao paredão, levados através da correnteza vermelha, em busca apenas de proteção para que suas penas também não grudem na pegajosa gosma pútrida que o reveste. Em vão. Uma a uma as gaivotas tiveram em suas penas revestidas, levando-as a tombar no breu eterno. Revoadas se fizeram em sua homenagem.

A beira do precipício, gaviões faziam barricadas, cada uma do seu próprio jeito. Uns usavam toras imensas para impedir que os demais fossem arrastados; outros apenas alguns galhos secos e frágeis, cobertos por uma grossa cortina escura. Com o tempo, as grandes toras foram bicadas por gordos abutres que não podiam mais continuar sem encher suas enormes panças com quantidades tão limitadas de pequenas almas. Grandes buracos foram abertos nas toras, reduzindo-as apenas a um enfeite macabro para ornamentar o salto na escuridão.

Enfim o grande urubu se fez ouvir novamente. Crocitava impropérios, induzindo dezenas de papagaios a repetirem suas ordens contra os gaviões aos demais, afim de que qualquer barreira ao abismo fosse retirada. Tinha o rosto pintado de branco, pois se achava uma imponente e astuta águia, apesar de se atrapalhar até mesmo para comer a carniça deixada pelas raposas. Ele próprio alimentava a correnteza, agora pútrida, que arrastava todos a seu destino. Mas a pintura impressionava aos ignorantes, principalmente aos que clamavam por uma águia imponente no comando de tudo. Pobres tolos. Todos estavam convencidos de que deveriam aceitar seu destino e às margens de um abismo fétido e obscuro. Apenas o pequeno pardal e algumas ararinhas munidas de pequenas velas ainda se preocupam. Lágrimas rolam por seus bicos. Suas vozes são encobertas pelo som da cachoeira bordô. O abismo agradece.


P.S.: Até quando urubus se fingindo de águias nos dirão o que fazer?

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