quarta-feira, 13 de abril de 2011

E Assim Surge um Mito

Era uma grande fazenda, ícone na produção de café no Brasil do final do século XIX. A lei áurea já havia sido assinada, mas ainda existiam os fazendeiros que mantinham alguns escravos em suas propriedades e assim era nessa fazenda e, para evitar fugas ou problemas, o proprietário fechou um acordo com os escravos: daria algum dinheiro e comida de boa qualidade em troca do silêncio. Eles não tinham nada a perder ou a ganhar, já que só se veriam teoricamente livres da escravidão e praticamente passando necessidade em um mundo cruel. 
Nessa propriedade morava uma família de escravos que há muito tempo servia ao proprietário e que, inclusive, se formou em meio ao martírio do abusivo trabalho. Era composta pelo casal e seu filho de 14 anos. O casal era simples, de poucas palavras e que gostava de trabalhar muito. Sempre tiveram a simpatia do proprietário e com isso não recebiam chibatadas ou eram humilhados; já o garoto era um pouco mais falante, mas não gostava muito de aprontar, e sim de aprender! Vivia sorrindo, trabalhava duro e no final da tarde gostava de aproveitar o tempo livre conversando com os outros escravos, perguntando sobre tudo o que via ou que os outros haviam visto durante o dia. 
Em uma tarde qualquer, o proprietário o chamou e o levou para a sala principal onde estavam outros fazendeiros importantes. Todos fumavam charuto, bebiam uísque e riam descontrolados. Ao verem o garoto, fizeram silêncio. O menino estava cheio de vergonha, nunca estivera em um lugar com tanta gente importante (e bêbada) em toda sua vida e não sabia como se comportar. Disse um singelo "oi", mas não houve resposta, apenas algumas trocas de olhares famintos entre os brutamontes, que logo se puseram em pé e partiram pra cima do garoto. Despiram-no e começaram a se despir também; ele tentou sair dali antes que algo acontecesse usando alguns movimentos de capoeira, mas foi impedido ao levar um golpe de facão na virília esquerda. A dor era tão absurda que não conseguia se mover e, mesmo ensanguentado, aguentou aquele show de horrores regado a bebida e muita zombaria por parte dos homenzarrões. 
Estava tudo acabado. Os homens puseram novamente as roupas e partiram. O proprietário pegou o pobre garoto e o levou para a mata e ali o despejou, com um enorme e profundo corte. Ele não conseguia pensar em nada, somente em se perguntar a razão de tudo aquilo, daquela violência desnecessária. Resolveu não mais voltar pra casa e seguir mata a dentro em busca de alguma solução tanto para a pergunta quanto para se curar e não morrer. Acabou encontrando o povo da mata, que o ajudou e o ensinou sobre a mata, seus benefícios e o que usar dela para cada situação. Infelizmente, sua perna não pode ser salva, pois demorara para encontrar alguém que lhe ajudasse a tempo. Após algum tempo, já conseguia andar sem ajuda, já conhecia tudo que necessitava para viver na selva e também se acostumou a pitar, já que havia um ou outro escravo fujão no meio do mato com quem fizera amizade e dividiu as primeiras tragadas, além de receber um gorro vermelho como uma lembrança por ter ajudado alguém que precisava.
Apesar de ter sofrido tanto, o agora rapaz não quis vingança. Tão pouco quis voltar àquela fazenda. Dedicou sua vida a fazer algo que deixasse os donos de fazenda irritados e os escravos a rir muito. Cada dia era uma travessura nova: amarrar crina dos cavalos, assoviar de forma aguda e alta durante a noite para que ninguém o localize e fiquem com medo, distrair cozinheiras de alguma forma para que a comida queime. O por quê disso e não de uma vingança? Aquele garoto nunca teve maldade no coração, não aquela maldade perversa que as pessoas se acostumaram, mas sim uma maldade infantil e engraçada, de alguém que não teve a inocência abalada nem mesmo pelo pior dos atos.


P.S.: Uma estranha história que, em um momento, se torna familiar demais.
P.S.²: Apenas uma releitura do folclore nacional. Apenas quis imaginar a origem desse ser de uma maneira controversa.
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quarta-feira, 6 de abril de 2011

Uma Noite Qualquer

Após um dia de muitas brincadeiras (boas ou nem tanto), lá estava César em sua cama, dormindo. Era um dos únicos momentos na qual era possível vê-lo tão sereno: à noite, na hora de dormir. Seus olhos fechados, respiração profunda, imaginação funcionando aleatoriamente e pegando momentos já vividos, pessoas já vistas e misturando tudo em histórias das mais diversas. Fora do horário de dormir, o garoto não era tão sereno. Ele já fez muitas pequenas maldades. A maioria deixava todos indignados, como na vez em que colocou uma bombinha de considerável potência dentro de um filhote de gato e assistiu rindo o momento da explosão.
Sua mãe, que fora criada em meio a cinco irmãos arteiros, achava aquilo até certo ponto normal, afinal, já aprontara das suas também e achava que aquilo tudo era apenas uma fase. Já seu pai, apesar de ter sido um pouco arruaceiro quando adolescente, achava aquelas atitudes muito malévolas para uma criança tão nova - César possui apenas 8 anos - e, para tentar fazê-lo parar de ser cruel, já fez de tudo: desde conversas amistosas até uns belos tapas. Nada deu certo. Resolveu tentar algo mais infantil e contou a história do homem do saco; o filho só fez rir e ficou ainda pior. Quem poderia imaginar que um garoto que dormia tão sereno fosse tão cruel?
César, apesar das encrencas em que se metia, gostava de ter seu quarto sempre arrumado e passava a maior parte do tempo livre nele. Era um quarto aconchegante com uma enorme janela por onde entrava razoável quantidade de luz solar e ficava completamente iluminado pelo luar que banhava sua cama. Luar esse que o fazia dormir como um anjo. E era assim que ele estava no momento.
Enquanto dormia, seu quarto era tomado por uma suave neblina enegrecida que foi se juntando ao redor da cama e, após algum tempo, tomou forma de uma criatura magra e encapuzada que se posicionou ao pé da cama. Tal criatura mais parecia uma sombra encapuzada, lembrava as descrições que as pessoas faziam da morte, mas não possuía um esqueleto por baixo dos trapos que formavam sua capa, apenas uma figura tão obscura quanto uma sombra. E esse estranho ser arrastava consigo algo que se assemelhava a um enorme e pesado saco feito de trapos negros e esvoaçantes que não hesitava em se mexer ferozmente, como se algo quisesse escapar dali.
A criatura ficou imóvel ao pé da cama por alguns momentos, como se estivesse analisando o garoto por algum motivo, mas logo arrastou o saco para mais perto da cama e, de imediato, alguns pedaços do trapo começaram a tomar forma de pequenas mãos negras e se esticaram em direção a César. As mãos passaram por suas pernas e logo entraram pela bermuda do garoto que, ao sentir a estranha sensação de estar sendo invadido, olhou para trás, se assustou com a criatura e tentou gritar e se arrastar para fora da cama. Tarde demais! As pequenas mãos começaram a sair por sua boca e a fazer o caminho de volta para perto da aparição, envolvendo todo o garoto em trapos negros que se moviam em desespero.
O estranho ser então puxou o saco de volta para próximo de si, levantou-o e jogou-o para trás afim de poder arrastá-lo e finalmente ir embora. E assim o fez. Foi-se dirigindo à janela e voltou a forma de neblina para rapidamente desaparecer levando mais um garoto de coração negro. A lenda da qual desdenhou veio ensiná-lo uma lição. Mas somente César a aprendeu, os outros jamais saberão.


P.S.: Lendas antigas e esquecidas retornam em uma noite qualquer para seu devido lugar no imaginário doentio das pessoas.
P.S.²: Um tanto quanto clichê, mas gostei muito de imaginar essa cena!
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